em Lisboa

A Madragoa nasceu à beira-rio e a partir dele. Lisboa e o Tejo são parte da história e da memória do Bairro. 

Na soleira da colina que sobe na direcção da Lapa, a Madragoa estende-se por toda a faixa ribeirinha. Historicamente, terminava na Avenida D. Carlos, mas na prática é difícil estabelecer-lhe os limites.

A Madragoa é um lugar e a nossa forma de estar nele. Dir-se-á, com razão, que é assim com todos os bairros de Lisboa. Mas os da Madragoa têm o gingar marinheiro de gerações, de quando o bairro do Mocambo que antecedeu o actual foi o destino de centenas de pescadores e homens do mar que pela costa abaixo vieram quando por assoreamento insanável a barra de Aveiro fechou, obrigados a procurar a sul o sustento que não conseguiam a norte.

Nesta transumância de gentes - sobretudo de Ovar, Murtosa, Estarreja e Ílhavo - moldou-se a personalidade actual da Madragoa.

 Do Mocambo à Madragoa

Fora das muralhas da cidade, para quem seguia das Portas de Santa Catarina em direção a Belém, surgia no século XVI, em plena dominação filipina, um bairro de negros que tomou a designação de Mocambo que remete para as suas origens africanas. Em redor, situavam-se entre outros os palácios dos duques de Aveiro e dos marqueses de Abrantes, o Paço Real de Santos onde atualmente se encontra a embaixada de França, os conventos das Bernardas, das Inglesinhas e das Trinas do Mocambo e a modesta e antiquíssima capela dos Santos Mártires – Máximo, Veríssimo e Júlia – que vieram dar origem à designação da Freguesia de Santos-O-Velho. O rio Tejo banhava então a praia onde, no início do século passado, foi construído o aterro e posteriormente transformado num dos mais importantes eixos viários da cidade. Ao longe, a meio do rio, permaneciam fundeados e impedidos de atracar os navios sob os quais recaía a suspeita de epidemia, permanecendo de quarentena. O posto de desinfeção haveria de ser criado no cais da Rocha Conde de Óbidos nos finais do século XIX.

Ainda escassamente urbanizada, o terramoto de 1755 não atingiu particularmente a localidade para além de algumas derrocadas registadas no Convento das Bernardas e no Palácio dos Duques de Aveiro. Mas, foi sobretudo a catástrofe então vivida que veio a determinar o crescimento urbano da área ocidental de Lisboa. As classes mais abastadas abandonavam o centro da cidade então em ruínas e transferiam-se para Santos-O-Velho e faziam nascer um novo bairro na chamada Lapa aristocrática, enquanto o Convento das Trinas loteava os terrenos, vendendo-os a preço mais reduzido e dando assim origem ao bairro popular da Lapa, desde o Mocambo ao sítio da Bela Vista.

A partir dessa altura, à semelhança do que sucedia noutros pontos da costa portuguesa onde surgiram povoas de pescadores, começou a afluir para aquele local gentes oriundas sobretudo de Ovar a que vieram juntar-se mais tarde naturais da Murtosa, Pardilhó e Estarreja, acabando por ali formar uma importante colónia de gente vareira constituída por pescadores e vendedeiras de peixe que inundavam o cais da Ribeira Nova, nas descargas do peixe ou do carvão. A essa gente ovarina haveria de com o decorrer do tempo se associar a designação de varina, nascida por corruptela do respetivo gentílico. Esta foi, seguramente, uma das mais importantes migrações internas verificadas antes da era industrial pois, o grande êxodo das zonas rurais do interior para a cidade apenas se regista a partir de meados do século XIX.

À medida que a colónia ovarina foi crescendo em número, os negros que habitavam o bairro foram desaparecendo até que, no século XIX, o antigo topónimo foi abandonado e substituído pela sua atual designação, tomada da antiga rua da Madragoa, atualmente denominada por rua do Vicente Borga. Quanto à origem do topónimo Madragoa persistem várias interpretações, não sendo ainda ponto assente o seu significado.

E, a gente vareira que passou a dominar por completo aquele típico bairro lisboeta, conferiu-lhe uma forma peculiar de vivência marcada pelos jeitos graciosos das suas varinas de canastra de peixe à cabeça e os pregões que característicos. A vizinhança mantém a proximidade que caracteriza os bairros piscatórios e, bem no centro do bairro, na taberna que foi da Maria Barbuda e onde nasceu Maria Honofriana Severa, a fadista que se tornou uma lenda do fado, um velho fogueteiro minhoto preserva quadros de antigos grupos excursionistas, alguns dos quais deram origem a coletividades de cultura e recreio, enquanto na rua os galináceos passeiam em completa liberdade.

Nas proximidades do bairro, a Casa do Concelho de Ovar manteve-se em atividade até meados da década de setenta, altura em que foi extinta. As gerações mais novas já nasceram no bairro e passaram a identificar-se mais com Lisboa do que com as raízes dos seus ancestrais. Entretanto, o cais da Ribeira Nova foi perdendo a azáfama de outrora. O mercado da Ribeira foi transferido para novas instalações construídas no concelho de Loures, nos arredores de Lisboa. O antigo Convento das Bernardas que chegou a alojar mais de meio milhar de pessoas em condições deploráveis foi submetido a obras de recuperação e muitos dos seus antigos moradores transferiram-se para os bairros da periferia. A população encontra-se atualmente bastante reduzida e o bairro perdeu em grande medida a alegria e vivacidade de outrora. Porém, o seu traço castiço e típico persiste nomeadamente quando a sua juventude á chamada a representá-lo nos desfiles das “marchas populares”, criação fantasiosa que não se confunde com folclore e etnografia, mas que não deixa de aludir às tradições mais peculiares de cada bairro com recurso a coreografias e adereços ao jeito do teatro de revista à portuguesa.

Muito provavelmente, ninguém como Cesário Verde conseguiu captar em verso a ruralidade de Lisboa, as formas de vida, encontrando nela a província e os seus costumes nos modos das suas gentes. São deles, aliás, estes versos que retratam precisamente as suas varinas:

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer

(…)

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!